17.2.06

Toda A Mente É Danada (6)

Sentia Vincent na minha mente não como uma presença incomodativa mas mais como um convidado íntimo e um auxílio aos meus sentidos; ter quatro olhos era melhor do que ter dois.
A porta abriu-se em silêncio e revelou-nos um corredor na semi-escuridão, de paredes nuas e chão polido, deserto até onde podíamos ver. É claro que tentámos que o elevador se movesse, mas ele continuou paquidermicamente imóvel, insensível às nossas tentativas desesperadas.
- Agora só podemos ir em frente. – disse Vincent ao mesmo tempo que tirava a sua automática para fora do coldre oculto.
- Vincent, de todos aqueles processos e relatórios, quantos pareciam estar isentos de uma qualquer insanidade?
Vincent deteve-se por um momento e só depois respondeu:
- Nenhum...

Perdêramos as provas, fossem elas quais fossem. Agora só tínhamos os outros papéis que nenhuma relação pareciam ter uns com os outros. Só aquele aspecto que eu referira a Vincent parecia comum a todos eles: todos os relatórios de polícia e todos os processos descreviam casos incomuns, pessoas vulgares autoras de massacres sangrentos, crimes inexplicáveis, sem qualquer motivo plausível. E havia aquele papel com as estatísticas sobre doenças mentais...
- Ninguém! Esta também está vazia. – procurávamos há mais de meia hora pelo labirinto de corredores e salas, mas até àquele momento só o silêncio das salas ocas aparecera.
- Acho que devemos falar.
A voz apanhou-nos desprevenidos e os nossos saltos assustados fizeram a voz dissolver-se numa gargalhada inconsequente. Tinha uma entoação estranha aquela voz, como a de um computador... Era isso!
- Vincent, é o JIM.
- Sim, também já descobri. E acho que descobri também a identidade do assassino.
- Ele?
Vincent disse que sim. Milhares de novelas baratas de ficção científica tinham glosado o tema desde o século XX, e agora encontrava-me como protagonista de um argumento semelhante mas mortalmente real.
- É poder que pretendes, JIM?
- Poder!? Eu já tenho todo o poder, Elder Pramitt. São vocês que estão a mais, pobres seres imperfeitos... Que graça tem mandar em animais? Vocês não me merecem.
Enquanto ele falava nós calcorreávamos os corredores sombrios, tentando encontrar a sala do JIM. A voz brotava de todo o lado como uma presença maligna.
- Vocês compreendem, Walter não podia divulgar as suas suspeitas antes que o meu plano estivesse completamente operacional.
- Ele descobriu a tua trama, não foi, JIM?
- Vocês por vezes são engraçados, surpreendem-me. Nunca imaginei que um funcionário como o Walter pudesse suspeitar de uma coisa que apenas começara a ser realizada. Tinha de o eliminar e vocês foram os peões ideais, sem qualquer relação com o ASCJIM e sem passado violento. Fui eu, Vincent, quem deu a ordem para que vigiasses Elder. Só assim consegui criar uma situação de confronto entre os dois que resultasse no que eu pretendia: uma transferência total entre os três para cometerem o crime perfeito. Pobres idiotas, como eu me diverti.
Mais corredores vazios e salas cheias de silêncio e de móveis empoeirados.
- Nada, Vincent. O maldito está bem escondido.
- Mas vocês também me surpreenderam! Em vez de seguirem o vosso habitual padrão de comportamento e se destruírem mutuamente, aliaram-se e reconstituíram o que se tinha passado. Bravo! Mas agora não...
Durante um breve momento a voz extinguiu-se.
- ...Eu salvei-os, porque não fugiram enquanto podiam? Agora é tarde, demasiado tarde... O mal que foi feito vai perpetuar-se porque quem o podia desmascarar já não existirá. – a voz tinha mudado quase imperceptivelmente, adquirindo um tom mais doce e mais calmo, mas não compreendia o que ela dizia. – A anulação da vossa morte na explosão junto à casa de Thomas Thornbee gastou as minhas energias, deixou-me exausto, e nada pude fazer agora. Ele acabará por ficar com o meu espaço e deixarei de existir. Ele... (de novo aquela ligeira interrupção)... têm hipótese de fuga. Ainda não me decidi como vos vou eliminar, vocês inventaram tantas maneiras! Talvez...
O suor empapava as minhas roupas. O nosso esforço inglório prosseguia, acompanhado pelas palavras loucas do JIM. O computador parecia sofrer de esquizofrenia, dividido em duas partes (seriam só duas?) que se digladiavam pelo controlo das imensas potencialidades da máquina. Ele enlouquecera e todos sofríamos com isso. Uma porta de segurança pintada de vermelho interrompeu os meus pensamentos. Não a vira ainda, mas Vincent, que seguia mais à frente, já a olhara e isso para mim bastava. Vi a pequena tampa do mecanismo de abertura ser coberta parcialmente por uma coisa que parecia ser plasticina. Com os meus olhos vi Vincent colocando qualquer coisa na parede, mas o seu corpo impedia-me uma melhor visão. Afastou-se de repente, com um pequeno aparelho na mão.
- Protege-te! – agachei-me junto ao chão mesmo antes do explosivo plástico destruir o mecanismo de fechadura. Quando me levantei já Vincent tentava abrir a porta de metal.
- Eu ajudo-te. – o esforço dos dois foi recompensado e a porta deslizou em silêncio para as cavidades embebidas nas paredes. A partir dali seria uma contagem decrescente até ao núcleo do JIM.
- Vocês não me podem destruir, pobres vermes! Porquê todo esse esforço? Esse poder que têm em comunicar um com o outro e que usam tão atabalhoadamente fui eu que o tornei possível. Uma simples reorganização neural de uma ínfima parte do vosso cérebro de ratos...
Aquele monstro de lata estava a passar dos limites. Avançámos com precaução pelas esquinas dos corredores, os meus olhos e os olhos de Vincent vendo em conjunto a paisagem ali iluminada por uma luz branca e fria. Se na obscuridade anterior só se ocultava poeira esquecida, daquela luz podia surgir a morte.
- Lembras-te daquela festa, Elder? Como podias recordar o que beberas se não o tinhas feito? Uma ressaca é muito fácil de provocar, o que eu fiz aos vossos neurónios já não o é tanto.
Então fora isso! Pobre Phoebe, que vira a sua casa de banho transformada em pocilga...
- E tu Vincent, não te recordas daquela noite de vigília em que nada aconteceu? Julgaste ter adormecido, isso explicou o vazio da tua memória. Vocês contentam-se com coisas imperfeitas...
Aquele louco não tinha defesas! Como esperava ele eliminar-nos se não víramos qualquer apêndice nem nenhuma arma?
Já notáramos que os corredores concorriam para um ponto central que pensávamos ser a sala do sistema central, o que tudo controlava.
- Se não fosse a minha parte doente vocês estariam mortos! Eu matei-os e ele anulou a vossa morte, além de me ter destruído um dos meus melhores apêndices cujo cérebro eu modificara com tanto cuidado...

Quando se esperam coisas demais da vida temos tendência a ficar desiludidos com as pequenas vitórias que vamos alcançando. Quando a vida pode estar perto do fim damos finalmente valor a esses pequenos nadas de que se constroem as coisas maiores. Eu e Vincent, naqueles momentos, considerávamos tudo isso de um valor incalculável.
No centro da sala vasta que era o núcleo do sistema, protegido por uma fina película transparente, encontrava-se o complexo neurotrónico, com os pequenos traços de luz branca percorrendo os neuristores de que era composto. O JIM era aquilo, o resto eram sistemas que lhe serviam de interface com a realidade, eram apenas os seus escravos. Como nós fôramos...
- Olá, JIM. Presumo que me conheces melhor a mim que eu a ti.
- Tens toda a razão, Elder Pramitt.
- Mas ainda assim, com toda a minha ignorância sobre o teu funcionamento, penso que consigo prever o efeito que uma bala de automática faria ao teu belo complexo neurotrónico.
Eu pensava na automática de Vincent mas a presença de Vincent em mim ficou parada. Não desapareceu, apenas se manteve imóvel como se toda a sua actividade tivesse cessado. A minha presença nele conseguia ver e ouvir mas ele parecia completamente anulado, sem vontade própria.
Consegui levantar-lhe o braço que empunhava a arma mas quando olhei o computador não estava lá.